sábado, 27 de agosto de 2011

O exílio

Primeiro eu me exilei. Fiz retiro comigo mesma e pretendo continuar a fazer. Essa faxina de dentro pra fora não é fácil. Dói, mas só dói no começo. Depois, você até consegue olhar para algumas coisas -coisas que antes te fariam sentir um nó na garganta e até mesmo te fariam chorar- e deixar os lábios se armarem em direção às orelhas. Tive medo de tocar no passado e não conseguir resgatar minha mente e meu coração. Tive medo de não sucumbir e de alguma forma tentar resgatar a pontinha que restou dentro de mim daquilo tudo que eu era. Mas a maturidade sempre bate à porta. Amadurecer é exercício diário e não vem do nada. Requer tempo e paciência.
No início deixei que minha mente vagasse o quanto quisesse, vasculhasse na memória os momentos bons e também os ruins. Deixei que ela vivesse e morresse naquilo tudo que já havia sido escrito e vivido. Depois, deixei que o coração tomasse partido e que se partisse também. É do partir que se faz o inteiro. Depois de muito sentir, deixei que o coração descansasse, batendo num ritmo mais tranquilo e vivo. E então foi a vez do corpo sentir falta. Foi a vez da pele querer, fazer e acontecer. Tomei banho demorado, fiz massagem em mim mesma e sacudi os fragmentos de passado que ainda residiam em mim.
Deixei que os dias passassem e que eu inteira experimentasse o que era novo. E realmente tem sido novo. A casa pode ser a mesma, as roupas e o perfume também; mas o meu olhar sobre todas essas coisas é novo. Sobretudo o meu olhar sobre mim mesma.
Tentei adiar o quarto. Era lá que o mais palpável residia. Me pareceu tão escuro e perturbador que tive que mudar a lâmpada de lugar. Hesitei, pois faxinar o quarto e remexer nas gavetas é abrir o baú das recordações. Respirei fundo, coloquei minhas músicas mais calmas e adentrei naquilo que era tão meu mas que já me era desconhecido.
As cartas -ah, as cartas-, tão vivas, tão sentimentais e emocionais, e ainda há aquelas que não foram nem mesmo entregues. Os bilhetes, os textos começados e jamais terminados, a flor grudada na parte de dentro do guarda-roupas, as fotos que não foram postas nos porta-retratos, os sorrisos e as lágrimas que eu ainda pude ouvir escondidos nos cantinhos de todas essas coisas. Algumas dessas miniaturas de passado eu guardei, umas na memória -para serem lembradas num dia de sol que há de vir e também quando chover, porque a chuva também há de aparecer- e outras em caixas. O restante foi para onde deveriam ir de fato. Com o tempo eu também aprendi o valor do desapego.
Ao final do processo permiti que minha mente vagasse mais uma vez e mais demoradamente sobre todas as coisas. De tudo, ficou o essencial. Num primeiro momento eu permito que o passado fique em caixas. Depois, quem sabe...

19 comentários:

  1. Há momentos em que é absurdamente necessário fazer uma faxina em nossa vida, em nós e muitas vezes isso machuca, faz lágrimas cairem, mas precisamos nos livrar daquilo que nos impede de chegar até a felicidade. Boa sorte com as constantes mudanças que estão por vir.
    Como sempre, texto incrível (:
    Beijos

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  2. É interessante, o fato de eu ter publicado ainda a pouco um texto, no qual falo da experiência de me permitir viver coisas novas, assim como você.
    Beijos
    Ótimo texto.

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  3. "Amadurecer é exercício diário e não vem do nada. Requer tempo e paciência."
    Faxinar a alma de vez em quando nos deixa mas leve.
    Você sempre me emocionando♥

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  4. por que guardamos coisas que no fazem sofrer?

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  5. li duas vezes. comecei a lagrimar na metade da primeira, e na segunda já estava com o rosto todo molhado. é porque eu to passando por algo realmente complicado, e to me sentindo quebrada em pedacinhos bem pequenos. quase pó. e é difícil se reconstruir, acredito que saibas... enfim, teu texto realmente me tocou de um jeito bem intenso. lindo o que você escreveu, e lindo todo o teu crescimento também.

    beijo grande.

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  6. Texto puro, lindo, real. Gostei muito, e acho que preciso de uma faxina em mim, de dentro pra fora como você bem colocou!
    Lindo blog, parabéns! :)
    (seguindo)

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  7. Palavras essencialmente fantásticas! Talento e sensibilidade à flor da pele nesse jardim de emoções chamado Horto do viver!

    Fraterno Abraço!

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  8. Lindo texto!!
    Amei, de verdade.
    Já quis muito pegar todo o passado guardar em caixas e enterrar bem longe e bem fundo. Já até agi assim;
    Mas é ilusão... só depois vi que era em vão jogar tudo fora e deixar o que importa.
    Hoje faço exatamente o contrário. Guardo um cantinho pra cada mágoa, cada felicidade e dou a mesma importância pra tudo o que me fez crescer. De um jeito, ou de outro.

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  9. As vezes é preciso se exilar assim. E amadurecer todo o "eu". E recolher as melhores memórias. Lindo esse texto. Um beijo grande, Ana.

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  10. Faxinas são sempre necessárias em nossas vidas a partir do momento em que tem algo incomodando. As vezes é difícil mas quando terminamos o resultado é gratificante, nos sentimos mais leves e maduras.

    Beijos

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  11. Me identifiquei totalmente com seu texto. Estou passando por essa fase. Uma grande parte já foi. Agora falta outra, que talvez seja ainda maior. Mas irei. Sempre. Em frente.

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  12. Varrer cantos, recolher cacos e bugigangas, destroços e amontoados, limpar pós e teias de aranha, ô coisa pra dar trabalho , né. Incomodar, fazer calos. Mas é tão necessário.

    É quase vital a necessidade de enfrentar o caos dos próprios cômodos, colocar muros abaixo, fecundar os terrenos baldios com as lágrimas que chovem do rosto e com a labuta da alma. Coisa de gente que vive demais. Sente demais. Assim, como você, Nara. Assim como a coragem e a verdade que se revela nas tuas vírgulas e pontos. E na tua poesia, em prosa.

    Amo o que você escreve. Sempre.

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  13. E a gente pega as caixas e as despacha, assim quem sabe doam menos. Adorei Nara!

    Beijos!!

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  14. É que a gente tem mania de guardar tudo o que nos é importante, seja bom ou ruim, apenas guardamos e nos deixamos colecionar o que pode ser totalmente descartável, percebemos a bagunça que insiste em nos adentrar e se acumular pelos cantos de nós, e fingimos não ver, adiamos a faxina pra depois, pra um depois que parece nunca chegar, e é dessas que precisamos.
    Nara, tudo lindo demais, como sempre. :3

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  15. Texto bem reflexivo, gostei muito das linhas abordadas em suas palavras, bem rico em detalhes.
    Grande abraço e sucesso!

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  16. E aqui também, eu digo-lhe algo no mesmo sabor que num comentário que fiz hoje: eu fico admirado com a decisão que toma com o que acontece com você. A lucidez e o discernimento com que consegue viver sabiamente um sofrimento para depois renascer mais facilmente. Eis este trecho:

    «Deixei que os dias passassem e que eu inteira experimentasse o que era novo. E realmente tem sido novo. A casa pode ser a mesma, as roupas e o perfume também; mas o meu olhar sobre todas essas coisas é novo. Sobretudo o meu olhar sobre mim mesma.»

    Eu teria muito o que dizer, mas me faltam as palavras acertadas, que os meus silêncios contemplativos preencham o espaço que faltou no dizível deste comentário...

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